quinta-feira, 15 de maio de 2008

Poder






















Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes - o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o sátelite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir em sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia.

... A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro "passo para libertar o homem de sua prisão na Terra".

... Ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a Terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma Terra que era Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?
A Terra é a própria quintessência da condição humana ...; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

... Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

... Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.
Contudo, mesmo que deixemos de lado estas últimas e ainda incertas consequências, a situação criada pelas ciências tem grande significado político. Sempre que a relevência do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político.

... Mais próximo e talvez igualmente decisico é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana;

... Mas isso é assim apenas na aparência. A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária.

... O que se nos depara, portano, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente na da poderia ser pior.

Hannah Arendt, A condição humana (1958).

Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sitema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias - legais, morais, lógicas ou de bom senso - podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação.

Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo (1949).

Imagens: Homem na Lua; O Grito, Edvard Munch.