domingo, 10 de abril de 2011

Instabilidade perpétua

Na mesma tarde, no mesmo sítio, um garoto olhou o rosto iluminado da namorada e esse olhar era um olhar solar e todo o corpo do garoto parecia querer saltar na direção do abraço, mas a namorada, diante daquele olhar físico, perguntou: "Eu tô com espinha?". E essa era uma pergunta-caminhão. Vale dizer que enquanto o garoto corria numa bicicleta debaixo dos álamos com vários "coelhinhos de sol" nos pedais e no guidom, enquanto em sua boca brotava um sorriso, a minina-canhinhão o atropelou. Caso perguntássemos a ela: "Você não reparou no olhar do seu namorado?", ela responderia: "Não, não reparei; não entro em ressonância. Eu venho do buraco branco. Lá somos mágicos espíritas. Não temos corpo. Sou uma garota deduzida e moldurada. Idéias e narrativas deduzem todos os meus gestos. Eles não nascem do corpo; não são inaugurais. São fabricados a partir dos relatos do buraco branco. Eu estou entupida por esses relatos. Eles me dão passagem por tudo. Não quero silenciar e viver a partir do desconhecido de um corpo. Não suporto que algo brote da região opaca e fértil da aletosfera. Eu seria demitida da minha casa e minha casa é o buraco branco".
Juliano Garcia Pessanha, Instabilidade Perpétua




Talvez por uma necessidade de proteger essa alma nova demais, nele e nela, foi que ele sem humilhação, mas com uma atitude inesperada de devoção e também pedindo clemência para não se ferirem nesse primeiro nascimento - talvez por isso tudo é que ele se ajoelhou diante dela. E para Lóri foi muito bom. Sobretudo porque sabia que estava sendo bom para ele - era depois de grandes jornadas que um homem enfim compreendia que precisava se ajoelhar diente da mulher como diante da mãe. E para Lóri era bom porque a cabeça do homem ficava perto dos joelhos e perto das suas mãos, no seu regaço que era a sua parte mais
quente. E ela pôde fazer o seu melhor gesto: nas mãos que estavam a um tempo frementes e firmes, pegar a
quela cabeça cansada que era fruto dela e dele. Aquela cabeça de homem pertencia àquela mulher.
Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que estava antes encarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece quando eu estou me dando é que recebo, recebo. Cuidado, há perigo do coração estar livre!
Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos escuros do homem, percebeu que nesse seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No entanto vinha uma segurança estranhas também: vinha da certeza súbita de que sempre teria o que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher. [...]
- Mais do que nunca, respondeu ele com voz calma e controlada. A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu iria atingir era a santidade do corpo.
Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

Imagens: Munch, O Grito; Van Gogh, Girassóis