sexta-feira, 6 de maio de 2011

Escrever

Não é uma questão de criar o clima; é apenas que sei que quando começar a escrever não vou mais fumar este cigarro, tirarei o fone de ouvidos e não beberei mais. Ouvirei a música do texto, os dedos sobre o teclado, o pulsar da escrita em sons ritmados, pla, pla, pla, pla pla...; beberei o gosto das palavras belas, feias, bem ou mau colocadas, mas no texto; fumarei o ar que ronda minhas ideias, o texto, e cheirará então àquilo que está aí escrito.

domingo, 10 de abril de 2011

Instabilidade perpétua

Na mesma tarde, no mesmo sítio, um garoto olhou o rosto iluminado da namorada e esse olhar era um olhar solar e todo o corpo do garoto parecia querer saltar na direção do abraço, mas a namorada, diante daquele olhar físico, perguntou: "Eu tô com espinha?". E essa era uma pergunta-caminhão. Vale dizer que enquanto o garoto corria numa bicicleta debaixo dos álamos com vários "coelhinhos de sol" nos pedais e no guidom, enquanto em sua boca brotava um sorriso, a minina-canhinhão o atropelou. Caso perguntássemos a ela: "Você não reparou no olhar do seu namorado?", ela responderia: "Não, não reparei; não entro em ressonância. Eu venho do buraco branco. Lá somos mágicos espíritas. Não temos corpo. Sou uma garota deduzida e moldurada. Idéias e narrativas deduzem todos os meus gestos. Eles não nascem do corpo; não são inaugurais. São fabricados a partir dos relatos do buraco branco. Eu estou entupida por esses relatos. Eles me dão passagem por tudo. Não quero silenciar e viver a partir do desconhecido de um corpo. Não suporto que algo brote da região opaca e fértil da aletosfera. Eu seria demitida da minha casa e minha casa é o buraco branco".
Juliano Garcia Pessanha, Instabilidade Perpétua




Talvez por uma necessidade de proteger essa alma nova demais, nele e nela, foi que ele sem humilhação, mas com uma atitude inesperada de devoção e também pedindo clemência para não se ferirem nesse primeiro nascimento - talvez por isso tudo é que ele se ajoelhou diante dela. E para Lóri foi muito bom. Sobretudo porque sabia que estava sendo bom para ele - era depois de grandes jornadas que um homem enfim compreendia que precisava se ajoelhar diente da mulher como diante da mãe. E para Lóri era bom porque a cabeça do homem ficava perto dos joelhos e perto das suas mãos, no seu regaço que era a sua parte mais
quente. E ela pôde fazer o seu melhor gesto: nas mãos que estavam a um tempo frementes e firmes, pegar a
quela cabeça cansada que era fruto dela e dele. Aquela cabeça de homem pertencia àquela mulher.
Nunca um ser humano tinha estado mais perto de outro ser humano. E o prazer de Lóri era o de enfim abrir as mãos e deixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que estava antes encarniçadamente prendendo-a. E de súbito o sobressalto de alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece quando eu estou me dando é que recebo, recebo. Cuidado, há perigo do coração estar livre!
Percebeu, enquanto alisava de leve os cabelos escuros do homem, percebeu que nesse seu espraiar-se é que estava o prazer ainda perigoso de ser. No entanto vinha uma segurança estranhas também: vinha da certeza súbita de que sempre teria o que gastar e dar. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher. [...]
- Mais do que nunca, respondeu ele com voz calma e controlada. A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu iria atingir era a santidade do corpo.
Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

Imagens: Munch, O Grito; Van Gogh, Girassóis

terça-feira, 10 de março de 2009

Um dia alguém disse: “O bem-estar social já era”.
Chamada de matéria da Carta Maior: “


'Nós entramos muito tarde no delírio neoliberal. O Brasil é um país tardio. Neste caso foi bom', disse Conceição Tavares. Para a economista, assim o Brasil pôde evitar a destruição completa do estado de bem-estar social e dispor, diante da crise, do poder de resistência e enfrentamento da crise. O que nos dá poder são os bancos públicos, afirmou, no primeiro dia do Seminário Internacional sobre Desenvolvimento"

E nós ainda acreditamos...

sábado, 11 de outubro de 2008

Corpo






















Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo.
Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção.








Tendo que a morte provoca a dissolução da forma e deixa somente a substância, representada nas construções feitas de terra, o nascimento inaugura um processo resultante em um corpo humanisado. Enquanto o seu nascimento não é socialisado por certos atos como o dar o nome, a excisão, a circuncisão ou a escarificação, a criança não pertence ainda plenamente ao mundo dos homens; ela continua ligada àquele dos ancestrais, de onde ela vem. (...)

Nascimento e morte são dois episódios inscritos pela metafísica autóctone [da áfrica ocidental] em um movimento alternado de sigularização e de fragmentação. No nascimento, a separação do excedente de substância, que é a placenta, permite a uma singularidade humana tomar forma. Na morte, a dissolução progressiva da forma humana tem por simétrico a elaboração de uma composição não figurativa, nova materialização do defunto em sua qualidade de ancestral. Após o nascimento, a especiação começada na vida intra-uterina prossege até que a criança devenha um ser humano de parte inteira. Este processo conscerne acolher os princípios vitais herdados do ancestral e dos genitores, que são reunidos em uma nova totalidade humana singularizada. A morte vem desfazer esta união cujos diferentes constituintes serão redistribuídos ao fio dos nascimentos. No intervalo que separa estes dois eventos, o ser vivo, torna-se uma pessoa propriamente humana, trabalhada pelas relações que ele amarra, pelos eventos e ritos nos quais ele toma parte, bem como pela perpetuação de sua linhagem, para se impor como indivíduo terminado. (...)

A incapacidade da pequena criança pra distinguir a esquerda e a direita é um dos sintomas de sua dupla natureza. Seu esquema corporal é invertido, sob o modelo do gênio da mata. Para os Bwaba, a inversão se acompanha de uma recusa da face: a criança tem por face seu dorso. É a escarificação da face que permite o retorno do esquema corporal. O bebê é portanto provido de uma face construida pelas marcas de seu pertencimento linhageiro, o que o integra definitivamente à sociedade dos homens. (...)
Michèle Coquet, Le corps et ses doubles.


Na Europa, o corpo é uma substância individual que, em sua singularidade, se reporta diretamente ao modelo não corporal do qual ele é imagem. Dito de outra forma, o corpo não é inscrito em uma relação social mas em uma relação que revela a ordem da representação: ele não tem ligação com os outros corpos a não ser que todos [os corpos], tomados um a um, convergem para o mesmo modelo.

De onde vem nossa concepção do corpo? Para simplificar nós podemos dizer que ela foi errigida por três fontes principais: o dualismo, o criacionismo monoteísta e o pensamento da incarnação.

Michaël Housemann, La chair est image.


Imagens: máscara africana; ícone; modelo; casal africano; Jesus.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Nheengatu - A língua brasileira



Caipira é aquele que fala o dialeto caipira. É português, mas com palavras tupi e sotaque da língua brasileira. A língua brasileira é o nheengatu, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século XVIII. Seu nome parece coisa de índio, e é. O nheengatu incorpora a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. Na verdade, até hoje, quem se refere ao Ibirapuera, fica jururu, come abacaxi ou se pendura num cipó está se expressando nessa língua. No Brasil colônia, era falada fluentemente em uma grande área do país, que ia de Santa Catarina ao Pará. A elite também se expressava por meio dela, embora não em todos os setores. Durante os processos, o juiz dispunha de um intérprete. A língua foi criada no século XVI pelos jesuítas, destacando-se o Padre Anchieta. O fundador de São Paulo era linguísta. Para se entender com os nativos, classificou o tupi e criou uma gramática da língua geral. Ou seja, o nheengatu. Os índios tinham dificuldade em falar palavras portuguesas como os verbos no infinitivo. E também palavras com consoantes dobradas (rr) ou terminadas em consoante. Além disso, colocavam vogal entre consoantes. Mulher, colher, orelha viraram muié, cuié e oreia.

"Trabaiá é gostoso, o corpo da gente se deslancha"; "Se pará, discostuma"; "ô criança, vai fechá a poortera do currá"; "fechá a jinela".


Valmir Sanches, O Estado de São Paulo
Imagem autor desconhecido

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Poder






















Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes - o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o sátelite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir em sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido em sua sublime companhia.

... A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro "passo para libertar o homem de sua prisão na Terra".

... Ninguém na história da humanidade jamais havia concebido a Terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma Terra que era Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?
A Terra é a própria quintessência da condição humana ...; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.

... Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.

... Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja.
Contudo, mesmo que deixemos de lado estas últimas e ainda incertas consequências, a situação criada pelas ciências tem grande significado político. Sempre que a relevência do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político.

... Mais próximo e talvez igualmente decisico é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana;

... Mas isso é assim apenas na aparência. A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária.

... O que se nos depara, portano, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente na da poderia ser pior.

Hannah Arendt, A condição humana (1958).

Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sitema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias - legais, morais, lógicas ou de bom senso - podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação.

Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo (1949).

Imagens: Homem na Lua; O Grito, Edvard Munch.

domingo, 27 de abril de 2008

Religião









No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus, e o verbo era Deus. No princípio estava ele com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele nada se fez de tudo que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas mas as trevas não a compreenderam.
Houve um homem enviado por Deus de nome João. Veio para dar testemunho, para testemunhar da luz, a fim de que todos cressem por ele. Não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Era esta a luz verdadeira, que ilumina todo homem, que vem a este mundo. Ele estava no mundo, e por ele o mundo foi feito, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu mas os seus não o receberam. Mas a todos que o receberam, deu-lhes o poder de virem a ser filhos de Deus, àqueles que crêem em seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
E o Verbo se fez carne e armou tenda entre nós; vimos a sua glória, a glória de Unigênito do Pai, cheio de graça e verdade. João dá testemunho dele e clama, dizendo: "Este é aquele de quem vos disse: o que vem atrás de mim passou adiante de mim, porque era primeiro do que eu". Pois da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça. Porque a Lei foi dada através de Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. A Deus ninguém nunca viu. O Filho Unigênito que está no seio do Pai foi quem no-lo deu a conhecer.

Evangelho Segundo São João, 1, 1-18.

O ser humano não procura o prazer e não evita o desprazer: que se perceba quais preconceitos famosos eu com isso contradigo. Agrado e desagrado são meras consequências, meros fenômenos secundários, - o que o ser humano quer, o que cada partícula de um organismo vivo quer é um a-mais de poder. Da busca disso decorre tanto agrado quanto desagrado; partindo de tal vontade, ele busca resistências, ele precisa de algo que se contrapanha. O desagrado enquanto entrave à sua vontade é, portanto, um fato normal, o ingrediente normal de todo acontecer orgânico, o ser humano não foge a isso; pelo contrário, ele tem nisso algo continuamente necessário: toda vitória, toda sensação de prazer, todo acontecer pressupõem uma resistência vencida.

Minha visão: todas as forças e pulsões mediante as quais há vida e crescimento estão temperados com o fascínio da moral: moral como instinto da negação da vida. É preciso aniquilar a moral para libertar a vida.

Nietzsche, fragmentos 14(174); 7(6).

Imagens:Victor Meirelles: Primeira missa no Brasil; Camile Claudel: Perseu e Medusa.